quinta-feira, junho 28, 2007

Sobre A Sede

Mais uma vez o Deserto. A frequência com que o Deserto aparece nos meus escritos explica-se facilmente. No sitio onde vivo só se vê Deserto, seja qual for a janela que eu escolha. E por mais horas que perca sentado na soleira da minha alma a contemplar tão despidas paisagens, não me canso. Não poucas vezes, ou todas, dependendo da profundidade com que sou lido, também é verdade que a morte, ou a Morte, marca sempre o fim do que escrevo, mas quanto a isso pouco posso fazer, a morte é vulgar, é o que de mais trivial há na vida e é sempre o fim de todas as historias. Não seria por viver no Deserto que ela se tornaria mais ou menos vulgar, por aqui também se morre como em todos os outros sítios. A diferença está, a meu ver, no tempo que decorre entre o nascimento e a morte, a vida, que aqui tem um valor maior do que em outro qualquer local no mundo.

Neste local tudo é belo, foi isso que me levou a assentar Lar por aqui, antes de se conhecer o Deserto tudo no mundo nos parece adquirido, como se os corpos, animados ou inanimados, não fossem donos de qualquer existência e apenas fossem por si mesmos, sem lutas, sem terrores. Mas da primeira vez que se estabelece o dialogo entre os nossos abismos e este mundo, compreende-se tudo de forma diferente. Hoje sei que moro distante de tudo e todos, mas sei também que os Homens que vêm até mim tiveram de passar um Deserto para me chegar e se o passaram até esta morada foi porque dentro deles existe, antes de um amor à minha pessoa, um Amor maior a tudo o que significam estes espaços, uma compreensão das Sedes que aqui reinam. E eu sei que sou infinitamente mais pequeno em tudo que o Deserto, e mesmo morando em todos os recantos dele, sei o ridículo que é quando uma voz Humana nos diz amar mais que tudo no mundo… Ora bem, uma voz destas só pode ser de uma alma toscamente talhada ou de alguém que mesmo tendo pisado as areias nunca as conheceu. E a esses, eu que me tornei também Deserto, como já escrevi, tenho somente para oferecer a ilusão, e julgo que não por culpa minha.

O que quero dizer, nesta carta dirigida aos que habitam os meus espaços vazios, é que quando se está no Deserto não se deve procurar formas de matar a sede, mas antes formas da Sede ser a nossa Morte. Porque se o matar da sede é em si mesmo um fim, o acabar de uma vontade que nos move, a Morte pela Sede é o continuar de um caminho movido pela vontade rumo ao eterno.

(Sei que não tinha de escrever nada disto, poderia limitar-me ao Deserto das palavras onde eles igualmente me conhecem. Mas antes de escrever este texto, enquanto mais uma vez olhava as minhas areias, lembrei-me que na vida as pessoas que amo são raras como os Desertos e que nunca posso possuir delas mais do que dois punhos cheios.)

terça-feira, junho 26, 2007

A Figueira


Floram no chão as chamas do meio-dia e os subterrâneos vapores que turvam o horizonte. Fora o canto áspero das cigarras, toda a vida aparenta estar ausente deste mundo, apenas Urukagina se arrasta verticalmente como que embalado pelo ziziar dos machos… senta-se na sombra perfumada da Figueira ensaguentando o solo com o seu suor e já coberto pelo sombrio lençol, prende os olhos nos leves seios que desenham a paisagem de Sirpula. Pretende esquecer-se dos Homens e dos Deuses, por isso abandonou a sua cidade em plena hora de morte no Verão e partiu em busca de uma arvore da qual pudesse ver todo o Mundo livre do que não fosse Mundo, virando as costas aos que o amavam e ao seu majestoso templo que riscava os céus. O coração bate-lhe pesado no peito fazendo pulsar até a alma, ainda com o respirar profundo como os poços do deserto estende o corpo ao comprido sobre o vermelho das terras apoiando a cabeça nas raízes da Figueira. Todo o seu ser vibra com a frescura desta sombra, abandonado lentamente pelo cansaço que o ia carregando ao longo da sua caminhada.

Na copa da arvore os frutos encontram-se inchados, grandes como punhos cerrados, cobrindo Urukagina com o seu mel, mas ele ignora-o, perde-se agora nos espíritos que rodopiam à distancia sobre as areias e no bando de abutres que nas alturas parece acompanhar os espíritos nas suas danças espirais, junto com eles também o seu pensamento vagueia para longe da terra dos Homens e do seu próprio corpo. Anseia apenas não abandonar mais este lugar, não regressar ao seu reino, feito do Homem que ele é para todos os outros Homens que o habitam.

A noite chegou e partiu, muitas outras noites se passaram e juntamente com elas caiu Sirpula primeiro e depois todos os reinos, impérios e nações. Urukagina, ainda agora se encontra deitado debaixo da mesma Figueira, mantido vivo pelo eterno néctar dos figos que lhe desagua nos lábios, nem a dormir nem acordado, apenas a passear os seus sonhos de olhos bem abertos, juntamente com os espíritos do deserto e os bandos de abutres que dançam ao som do cio das cigarras, longe de si, longe dos tempos.

sexta-feira, junho 22, 2007

II


Ainda cativo do comboio lancei-lhe a âncora do meu sono e agora resido nestas eternas viagens. Esmagado pelo peso dos olhos, de tempos a tempos ainda vislumbro todo o mundo cheio de dormência a correr lá fora. O mar, o rio e os céus passam-me fugazes e distantes até se perderam de novo no sonho. Já me perdi até no tempo, juro que não sei há quantas Eras aqui estou... Do oceano para o rio e do rio para o oceano, viagem sem fim e sem ponto de partida ou chegada, escuto apenas o eterno murmurar das carruagens a deslizarem sobre os carris feitos de metálico tempo e uma vez por outra, o grito da velha Leviatã que vive nas margens líquidas do mundo.

A chuva parou, desperto com os guarda-chuvas a debandarem como pássaros pela minha janela. Os braços do sol escapam-se em esforço por entre as nuvens estendendo-se até tocarem na superfície do chumbo das águas. Todo o céu se revolta numa dinâmica lânguida ao erguer da Leviatã, aí, antes de me perder de novo, mergulho o pensamento nas planícies do firmamento, ouvindo cada vez mais distantes as vozes dos fantasmas. Até esse silencio se tornar na minha voz e por fim, na antiga língua das serpentes.