sexta-feira, novembro 07, 2008

A dádiva

Ele andava perturbado, assombrado. Pesava-lhe o semblante interiormente muitas vezes ao dia. Dava por ele a cair em poços profundos aparentemente por nada, absolutamente por Nada. E quando caia via-se abstraído de onde lhe pousavam os pés, alheio, e sucessivamente ocupava-se a perguntar a esse Nada questões que o deixavam atónito, quase enfeitiçado pelo que lhe pareciam ser as paredes que o limitavam. Enlevado apaixonou-se pelas suas texturas, provava-as questionando, tocava-as com fluentes multidões de infantis porquês - Porquê? Porquê assim, e se assim porquê? Porque Nada?! Então, mas, se porque Nada porquê? - E perseguia esse Nada sem compreender o quão longe do chão ficava, conquistando espaço em cada questão viu-se a deslizar até um ponto em que tudo era apenas isso, pontos suspensos no Vazio, tão longe que não reconhecia a sua casa, o seu lugar. Sentia-se diluído no total do espaço a que chamamos Universo, parte integrante e sensível do mecânico e alheio corpo divino, mas os porquês sucediam-se, sempre a palpar os contornos do Vazio. E tal se tornou a vertigem que até em pleno sono se via mergulhado atormentado pelas suas visões. Sentia-se agora asfixiado pelo próprio Universo sensível, como se nos seus delírios Ele já não fosse por si uma fonte de perguntas, como se esse confinado espaço lhe estivesse agora disposto a deixar passar as fronteiras do firmamento, concedendo aquilo que agora lhe parece inconcebível. Uma dádiva envenenada de questões impossíveis de materializar formalmente.

quarta-feira, outubro 15, 2008

Espargindo

- Todos nos movemos por alguma razão, nem que seja porque não podemos estar parados. A gravidade lança-nos amarras ao corpo e nem tão pouco em pensamentos nos conseguimos em absoluto libertar. E em lenta centrifugação nos diluímos uns nos outros, confluímos ideias, fundimos corpos e noutras vezes, talvez em soberana paixão, dilaceramos a forma e a alma alheia deflagrando-lhe o nosso mais vil e violento gesto. Ao mesmo tempo aspiramos veemente a ser mais, mais do que algo que não se sabe o quê... Pois eu acho que não podemos ser mais, não mais que putas e vilões. Não mais que palavras sem qualquer fundo de verdade, porque a verdade ilimitada e independente é só uma e chama-se Universo. Tudo o resto acaba, em absurdo, por ser vazio em si.

Isto posso dizer que me foi dito sofregamente no mais horrível dos cenários. Era uma sala pequena repleta de uma luminosidade pálida, que mais que luz aparentava-se com uma espécie de fumo ou neblina, mas que de facto era luz, uma luz que se ia esbatendo em direcção ao recanto mais distante da divisão até se tornar profundamente negra. E lá deitada estava uma mulher nua. Mas não foi ela que o disse, pois essa mulher encontrava-se morta, de barriga aberta e com entranhas espalhadas um pouco por toda a sua beleza e na sua barriga estava um recém-nascido. Mas não foi ele que o disse, pois o recém-nascido havia-se suicidado de dentro da barriga da própria mãe com um tiro na cabeça.

Fui eu que o ouvi.

- Todos nos movemos por alguma razão, nem que seja porque não podemos estar parados. A gravidade lança-nos amarras ao corpo e nem tão pouco em pensamentos nos conseguimos em absoluto libertar. E em lenta centrifugação nos diluímos uns nos outros, confluímos ideias, fundimos corpos e noutras vezes, talvez em soberana paixão, dilaceramos a forma e a alma alheia deflagrando-lhe o nosso mais vil e violento gesto. Ao mesmo tempo aspiramos veemente a ser mais, mais do que algo que não se sabe o quê... Pois eu acho que não podemos ser mais, não mais que putas e vilões. Não mais que palavras sem qualquer fundo de verdade, porque a verdade ilimitada e independente é só uma e chama-se Universo. Tudo o resto acaba, em absurdo, por ser vazio em si.

sábado, outubro 11, 2008

V

O pensamento é um local denso. Percorro as ruas a custo, passo a passo, rendilhando a cidade como que perdido, divagando. Sinto os pés pesados como que a andar contra uma corrente que ao olhar para o chão, constato. As ruas são então leitos ocultos sob torrentes de sangue. Com esforço subo mais uma colina por um emaranhado de paralelos e perpendicularidades, dobro a esquina, com mais esforço ainda, e ao contornar o ultimo e maior dos edifícios vejo toda a cidade coberta de um carmim iridescente a desaguar no Tejo. Ao fundo, além da ponte, um orifício incandescente no céu de onde surde a jorro o sangue. Continuo então a caminhar a custo, é tão denso o local dos pensamentos! Ao chegar à Rua Augusta decido subir ao Chiado e ai, subir ainda mais até me cruzar com o Pessoa, onde ele firme e de perna cruzada resiste resoluto ao caudal. Procuro o largo do Camões e não o encontro. No seu lugar há um jardim, um éden vibrante onde me decidi a esperar que a loucura passe na sombra dividida de duas árvores, uma de cerejas cristalizadas, a outra de pêssegos em calda. Virado para a Rua do Alecrim, onde a corrente desaba furiosa, ocupo o tempo a ver a agonia bovina dos arrastados.

sexta-feira, junho 27, 2008

2

Dois Homens vagueiam pelo deserto:

-O futuro está para a frente, vem em último.
-O passado está atrás mas vem primeiro.
-E o presente? O presente nem chegou nem vai chegar e no entanto é eternamente.
-Estranho é o tempo.
-Não menos o espaço.
-Sim, certamente. Entre as minhas mãos há uma distância infinita que posso conter na finidade dos meu braços.
-É isso mesmo, dividir o finito infinitamente.
-Passatempo dos melhores!
-Ocupa-se o tempo com o espaço.
-Sim, faço-o desde pequeno. Ocupava tardes inteiras a desejar a cegueira das pedras.
-Eu, quando que me perguntavam o que queria ser quando crescesse, respondia sempre que queria ser pó.
-Ah,Ah! Resposta original. Agora também penso assim. Felizmente que não me tornei pedra, não teria paciência para tanto.
-Então boa tarde!
-Boa tarde!

quarta-feira, junho 25, 2008

O Diabo é um Homem doido

A loucura apresenta-se como o além, o desconhecido. É um reino oculto para o Homem vulgar, tocado por alguns e habitado por poucos. A esses, sempre tão vulneráveis como qualquer outro Homem, acresce-lhes semear o medo aos restantes que de uma forma ou outra se ancoram pela "normalidade".

O seu poder demoníaco assenta no fosso intransponível que separa as realidades, na incapacidade de compreender porque motivo dada mente fez da curvatura espaço-tempo um circulo e nos abandonou à nossa domesticação perfeita. Que animal é aquele que vive em nós, que espírito se oculta nas primitivas profundezas do nosso cérebro?

Irá Ele acordar um dia?

E como resposta oferecemos uma prisão, escondemos dos olhos do mundo que existimos. Se o Diabo bate louco na janela, parece-me que aspira à liberdade... Não será tão louco quanto isso.





(Clip retirado do filme "Titicut Follies" de Frederick Wiseman com o som posteriormente editado/manipulado por mim.)

quinta-feira, maio 29, 2008

Veneno

Para ser sincero o veneno é belo, escorre-me pela ponta do queixo até ao pescoço, mela-me as mãos como a uma criança. O Veneno, para ser honesto, tem tons de oiro e brilha-me no corpo. E no fim das tardes de Verão, o veneno dissolve-me, canta-me da terra ressequída, sôfrega da noite, oferece-me o sufoco murmurante dos solos cobertos de asfalto. O veneno faz, enquanto eu olho o céu, as estrelas pousarem incandescentes nos meu olhos e eu nem me atrevo a pestanejar.

O veneno lapida-me, é fricção, arranca de mim o que é velho, funde-me os extremos. Cabe-lhe o lugar de diluir os mundos, rasgar a pele do espaço perpendicular à minha natureza. Ser memória por viver, inacção realizada, presente, passado e futuro mas menos, esquina de uma recta feita de gestos de dragão.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

O Ser

Lembro-me de estar numa sala imensa. O chão era uma enorme superfície de madeira salpicada de tapetes coloridos, as paredes altas, mais altas que o normal e a luz que iluminava o espaço provinha de uma ampla janela de onde brotava a parca claridade típica de um dia de Outono.

No espaço circulavam uns poucos seres gigantes, pouco me lembro deles, só que, se não eram mudos, aparentavam.

Pouco mais me lembro que isto. Tenho também, uma muito vaga ideia de que junto comigo haviam outros semelhantes a mim, mas deles nada soube. Algo em mim, uma força que embora sendo minha não me pertencia, cavou um abismo impossível de transpor.

E ali fiquei, sentado no chão, submerso numa agonia que ainda hoje consigo reviver ao pormenor. Lembro-me claramente de sentir todo o meu corpo prestes a rebentar devido ao choro convulso em que caíra, lembro duma angustia sem consolo possível, uma raiva, que me fez esquecer provavelmente as vezes em que um desses seres gigantes me tentou resgatar a uma calma que nunca seria minha.

Este foi o meu primeiro e único dia no infantário. No dia seguinte libertaram-me de novo nos campos de cereais que me pintavam o olhar, e onde, sem o saber na altura, um dia iria correr como que a cada passada quebrando as correntes que o mundo me havia prometido. Ali, onde me tornaria no Homem e no Monstro que sou.

quarta-feira, janeiro 02, 2008

III

Espreito pela janela do comboio e os céus ainda estão cinzentos. Abençoados sejam.

Os fantasmas por aqui deambulam como sempre, vestidos da sua morte. A mim cobrem-me as vestes deste ódio dourado que me fez cego para o mundo. Lá fora o rio segue sempre cheio dos meus pensamentos.

À volta do meu pulso firma-se algo – a tua mão. Gritam os carris, os fantasmas, o Rio, os céus, A velha Leviatã! O choro Dela é meu! Os bandos de chapéus-de-chuva a voarem paralelamente ao comboio recolhem-se, recolhe-se o mundo, numa esfera de improvável azul, fecham-se as pálpebras, recolhem-se as lágrimas com a ponta de ouro de uma asa. A tua mão, firme em mim, a tua mão seguida do teu corpo e do fogo dos teus cabelos e seguindo a extremidade dos teus cabelos… vinte e cinco mil, vinte e cinco mil milhões de quilómetros sem te reconhecer, a distância exacta que separa a minha mão esquerda da oposta.

E o peso dessa distância carrego-o junto com o meu silêncio, é meu nesta viagem.