quarta-feira, outubro 15, 2008

Espargindo

- Todos nos movemos por alguma razão, nem que seja porque não podemos estar parados. A gravidade lança-nos amarras ao corpo e nem tão pouco em pensamentos nos conseguimos em absoluto libertar. E em lenta centrifugação nos diluímos uns nos outros, confluímos ideias, fundimos corpos e noutras vezes, talvez em soberana paixão, dilaceramos a forma e a alma alheia deflagrando-lhe o nosso mais vil e violento gesto. Ao mesmo tempo aspiramos veemente a ser mais, mais do que algo que não se sabe o quê... Pois eu acho que não podemos ser mais, não mais que putas e vilões. Não mais que palavras sem qualquer fundo de verdade, porque a verdade ilimitada e independente é só uma e chama-se Universo. Tudo o resto acaba, em absurdo, por ser vazio em si.

Isto posso dizer que me foi dito sofregamente no mais horrível dos cenários. Era uma sala pequena repleta de uma luminosidade pálida, que mais que luz aparentava-se com uma espécie de fumo ou neblina, mas que de facto era luz, uma luz que se ia esbatendo em direcção ao recanto mais distante da divisão até se tornar profundamente negra. E lá deitada estava uma mulher nua. Mas não foi ela que o disse, pois essa mulher encontrava-se morta, de barriga aberta e com entranhas espalhadas um pouco por toda a sua beleza e na sua barriga estava um recém-nascido. Mas não foi ele que o disse, pois o recém-nascido havia-se suicidado de dentro da barriga da própria mãe com um tiro na cabeça.

Fui eu que o ouvi.

- Todos nos movemos por alguma razão, nem que seja porque não podemos estar parados. A gravidade lança-nos amarras ao corpo e nem tão pouco em pensamentos nos conseguimos em absoluto libertar. E em lenta centrifugação nos diluímos uns nos outros, confluímos ideias, fundimos corpos e noutras vezes, talvez em soberana paixão, dilaceramos a forma e a alma alheia deflagrando-lhe o nosso mais vil e violento gesto. Ao mesmo tempo aspiramos veemente a ser mais, mais do que algo que não se sabe o quê... Pois eu acho que não podemos ser mais, não mais que putas e vilões. Não mais que palavras sem qualquer fundo de verdade, porque a verdade ilimitada e independente é só uma e chama-se Universo. Tudo o resto acaba, em absurdo, por ser vazio em si.

sábado, outubro 11, 2008

V

O pensamento é um local denso. Percorro as ruas a custo, passo a passo, rendilhando a cidade como que perdido, divagando. Sinto os pés pesados como que a andar contra uma corrente que ao olhar para o chão, constato. As ruas são então leitos ocultos sob torrentes de sangue. Com esforço subo mais uma colina por um emaranhado de paralelos e perpendicularidades, dobro a esquina, com mais esforço ainda, e ao contornar o ultimo e maior dos edifícios vejo toda a cidade coberta de um carmim iridescente a desaguar no Tejo. Ao fundo, além da ponte, um orifício incandescente no céu de onde surde a jorro o sangue. Continuo então a caminhar a custo, é tão denso o local dos pensamentos! Ao chegar à Rua Augusta decido subir ao Chiado e ai, subir ainda mais até me cruzar com o Pessoa, onde ele firme e de perna cruzada resiste resoluto ao caudal. Procuro o largo do Camões e não o encontro. No seu lugar há um jardim, um éden vibrante onde me decidi a esperar que a loucura passe na sombra dividida de duas árvores, uma de cerejas cristalizadas, a outra de pêssegos em calda. Virado para a Rua do Alecrim, onde a corrente desaba furiosa, ocupo o tempo a ver a agonia bovina dos arrastados.