sexta-feira, abril 24, 2009

A dormência sobre a qual as pedras murmuram

Quantas vezes dou por mim a viver aquele local, como se lá estivesse, visualizando vividamente os seus detalhes, levado pelos contornos da imaginação e da memória do mesmo, ouvindo-lhe a vida dos insectos que nele pulsam, as abelhas que trabalham para lhe dar os encantadores tons, num zumbido que inflama a serra, quase como se fosse essa a sua voz. E nos fins de tarde frequentemente invejo-lhe o dourado com que o sol inunda aquele vale pintando as pedras, e o gado que se retira em resguardo da noite. Onde estará a manada agora? E os cavalos tão absurdamente livres com os seus potros, que se agitam de juventude até lhes faltarem as forças sobre o calor abrasador que só os montes dissipam, quebrando-se logo ali, puxando a si a coberta de uma sombra. E nas noites de insónia, quando já os pensamentos me exaustam, quando a cama se afigura já como a minha sepultura, viajo até lá, fixo os olhos da mente naquele céu magnífico só perturbado pelo recorte cuidado e elegante dos montes que me circundam. Como me invejo por não estar ali naquele momento, como invejo a parte de mim que já lá esteve, e que acordou sobressaltada com os uivos. E tento sentir quem os uivou, onde estão, o que fazem, o que pensam agora. A morte, a morte gloriosa no seu labor de fundir a vida com as montanhas, o cavalo que se diluía por entre as ervas, já só parcos ossos e os cascos sobrando como suporte de uma liberdade então fria, alheia, mais do que esquecida. O crânio da cabra à torreira do sol, ainda putrefacto, mais do que inconsciente, e mesmo ali, nos prados, mas mais à frente, onde a montanha se inicia a precipitar rumo à medíocre vila, planam as aves de rapina elevadas nos braços das correntes ascendentes, talvez se interrogando sobre o estranho bicho que eu sou. E tudo isto, e mais, sinto-o como se fosse um pensamento inexprimível, que não pretendo alcançar com estas poucas palavras escritas, mas que me agonia em parte por não o poder partilhar com todos aqueles com que gostaria, como o meu Pai, que irá morrer sem conhecer este lugar onde habito. Este pensamento que vale mais que uma infinidade de pensamentos Humanos, fruto de um labor que se mede em milhões de mãos cheias de Tempo.

quinta-feira, abril 23, 2009

Sobre o violento silêncio dos actos não descritos

Voava ela no espaço, que julgo ser-lhes amplo, rodeada de milhares de quadrículos que forram as paredes, por entre quadrículos maiores abaixo e a branca aspereza do tecto, ou seja, na casa de banho, penso que evitando as monumentais estruturas, cálidas, reflexantes, que se erguem lá, com alguma exuberância até para mim. Tendo já evitado outra estrutura, esta castanha e alta com uma chama no extremo, quando cruzando também os ares, precipitou-se sobre o azul das águas que residem no fundo da sanita, um fio dourado -vulgo mijo- respeitando as imperiosas leis da física, precipitou-se, glorioso à escala de tão pequeno Ser, embatendo contra a loiça branca, ao que se ergueram, contradizendo por instantes a gravidade, penso que, milhares de gotículas ricocheteando, que imperceptivelmente se voltaram a juntar ao fluxo -digamos torrente para acrescentar drama-, à torrente, que discorria rumo às águas da sanita, fundindo-se com a substância, direi cerúlea, do WC Pato -Aquazul- originando aí o pequeno milagre, talvez inconcebível para a pobre mosca, onde o azul se tornaria verde. Quem sabe fruto desta transmutação, a mosca entrou pairando um tanto ausente nesse espaço reservado ao uso da pia, e do qual, por questões de segurança, deveria forçosamente evitar, e para mal da pobre, os meus olhos Verdadeiramente, para mal da pobre, os meus olhos, mecanismo de uma precisão verdadeiramente diabólica, que nesse momento, ao fitarem-na, despertaram em mim um instinto que nem tão pouco reconheço como vulgarmente meu, em que coordenando a trajectória da urina, com a rota esperada da mosca, cometi o vil acto de a assassinar ali , projectando-a contra o verde das águas contaminadas pelo WC- Pato Aquazul e a minha urina, e agora -na altura-, também então pelo espírito e o corpo desse Ser, que tão vilmente matei sem lhe perguntar pela família, nem sequer enquanto rodopiava na espiral suprema provocada pela descarga do autoclismo, que veio novamente apagar o verde e o crime, com aquele azul tão belo e profundo do WC-Pato Aquazul.