quarta-feira, outubro 07, 2009

Gatinhos para dar

A lei decreta que assim seja. E por mais absurdo que soe, a lei embora decrete é pouco mais que impávida para quem não a lê. Não deixou, no entanto, de ser absurda a imagem da mulher que entrou pelos fundos da rua, envolta num vendaval de folhas de calendário, gritando – O Mundo vai acabar!! O Mundo vai acabar!!! – sem no entanto lhe ocorrer que gritar pelo fim do mundo é como gritar pelo fim do dia, ou das estações, em suma, é gritar pela finitude das coisas finitas. E lá vinha ela ao reboliço num caos de dias e anos, cheia de esperanças e de gritos tais que lhe saltavam pedaços de carne das paredes rasgadas da garganta, clamando que fosse o mundo a mudar e não ela. E assim continuou, acordando os gatos que dormiam nos parapeitos e que, após a olharem da forma como se olha o mundo, rolaram sobre si mesmos procurando de novo o sono.


A urgência leva a tais pobrezas de espírito e a verdade é que a vida é toda ela urgência. Realiza-se assim o destino de tão pobre criatura, condenada à patologia que a irá confinar à imbecilidade. E no fundo essa é a história da História. Paranóia e obsessão, envoltas com aquilo que de mais nobre temos, criaram o monstro que se busca sempre para além dele, como se ele fosse ausente em si, apontando o dedo, gritando, condenando, enfim, gerando uma sequência milenar de mundos (i)morais que acabam já amanhã e de passados que sorriem silenciosos, trocistas da febre pelo fim das coisas. Trágico é que no meio de tudo isto seja tão desrespeitado o descanso dos felinos e, mais ainda, a nobreza dos dragões que construíram o universo do seu suor e indiferença.


E eis que, já a meio da rua, a mulher se precipita contra o solo de queixo estrondoso na dureza do asfalto. À sua volta ainda o vendaval de folhas soltas, semanas inteiras agora maculadas do seu sangue e ela atrapalhadamente a tropeçar nas palavras, a lutar consigo para se levantar. Falhando, no entanto, sempre prontamente lançada pela magnânime Gravidade de encontro à poça de sangue, e ao seu fundo, que o seu queixo aberto alimentava.

Todos os gatos então se sentaram para observar.

E a mulher já era só um emaranhado de queda, sangue, gritos e absurdo. Por uns momentos via-lhe a cara à tona, toda muco vermelho, pastosa, onde irrompiam de novo os fins do mundo – O Mundo vai acabar!! O Mundo vai acabar!!! – anjos, - anjinhos- alinhamentos planetários, calendários a voar e a gravidade a calcá-la debaixo do seu calcanhar e depois, depois o silêncio.

O Silêncio que é igual para todos, para os que guardam para si a arrogância de contemplar na sua mente a fria sabedoria do TODO e para os que se limitaram a voltar ao leito dos parapeitos.

“Pois a lei decreta que assim seja.”